quarta-feira, 27 de abril de 2016



-- Eles se foram.
-- Quem ? Como assim ?
-- Eles se foram, Hortência, nos deixaram aqui.
-- Eles quem ?
-- Os nossos sonhos. Eles entraram em transe, fugiram de mim, fugiram de você, acho que são eles que fazem a vida ficar assim.
-- Assim como ?
-- Assim como não sei... um mal-estar de leve, um bem-estar que machuca. Nossos sonhos foram jogados nas estrelas, eles nos obrigam a brilhar mesmo estando à anos luz deles.
-- Eu não sei o que te dizer, Fernando, apenas viva com cautela.
-- Você é uma psicanalista, você deveria me dizer algo mais.
-- Os nossos sonhos são feitos pra gente ter rumo na vida. Digo, alguns deles. Outros são feitos pra gente jogar nas estrelas mesmo. Basta saber qual deles você vai viver, e qual deles vai virar soneca. – Respondeu Hortência com uma certa aflição, titubeando a fala.
-- Não sei, todos os médicos em que eu passo me dizem a mesma coisa. Todas as pessoas me dizem a mesma coisa. E tudo que elas estão dizendo me soa como um nada. – suspirou Fernando.
Enquanto Hortência pensava o que responderia ao seu paciente caótico, Fernando tentava segurar as memórias de sua vida que lhe ocorriam na cabeça. Perdido no que inventou, escreveu, manipulou, e o que realmente viveu, quebrou o silêncio com sua voz trêmula:
-- Acho que eu nunca saberei quem eu sou, ou quem as pessoas são...
-- Mas isto realmente não é nosso dever.
-- E qual seria o meu dever? -  extravasou.
-- Você está muito agitado, quer beber uma água?
-- Mais esta! Estou bem. – Respondeu acamando-se. É que as vezes...
-- As vezes o que?
-- As vezes eu sinto que a morte é a única resposta.
-- Não diga isto Fernando, não vá...
-- Não, não vou tentar tirar a minha vida. – cortando a fala de Hortência prosseguiu Fernando – Eu cansei disso tudo. Quanto falta pra terminar?
-- A consulta ?
-- Sim.
-- Vinte minutos. Mas você pode terminar a consulta quando se sentir a vontade.
-- Se eu não fosse obrigado eu nem teria vindo. Então vou ficar.
Não ficaram nem cinco minutos em silêncio e a voz de Hortência ecoou no consultório, cortando o silêncio:
-- Você não me disse como anda os seus livros, suas poesias.
-- Estou escrevendo muito pouco ultimamente.
-- Pouco? Pensei que tinha comprado uma máquina de escrever, justamente pra escrever mais...
-- Não.
10 minutos de silêncio que pareceram 10 segundos.
-- Deu a hora, Fernando, obrigada pela consulta. Hoje conservamos, pelo menos.
-- Não agradeça.
Levantou-se Fernando do divan, aparentemente desconfortável. Dirigiu-se à porta e saiu despejando suas dúvidas pelos concretos dos prédios nas ruas, indagou ser alguém ao sentir o cheiro das poucas árvores. Viu que não adiantara muita coisa a consulta, mas a vida continua. Seus anseios e suas angústias estarão sempre presentes tal como alegrias e contentamentos. Ele nunca se sentira tão vivo como agora, somente por andar na rua.

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